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Aleijadinho: Nas Origens Da Arte Nacional

Tatiana I. Krauts

Antônio Francisco Lisboa, cognominado Aleijadinho, era um dos artistas mais relevantes da América Latina na virada do séc. XVIII. Sua ação enquadra numa época histórica complicada, quando no Novo Mundo foi se acendendo uma luta pela independência, a qual constituiria uma etapa importantíssima na formação de nações e culturas novas. Sua obra é valiosa sobretudo para a arte brasileira.

O nome de Aleijadinho é indissociável do nascimento de um centro cultural e histórico importante do Brasil interiorano: uma primeira escola nacional de arquitetura e escultura, fundada nas terras do atual Estado de Minas Gerais, cujas tradições seriam desenvolvidas e adotadas por mestres contemporâneos.

Antônio Francisco Lisboa é filho de arquiteto português e escrava negra, da qual não ficou nenhuma lembrança. Como fosse filho bastardo, os documentos paroquianos não guardam uma data exata do seu nascimento 1. A hipôtese mais verossímil parece a de R. A. Freudenfeld 2, pela qual Aleijadinho nasceu em 1738. O estudioso confirma sua tese por um documento datado de 1814 (ano da morte do mestre), que diz que o artista tinha então 76 anos.

O pai de Antônio, Manuel Francisco Lisboa, havia chegado de Portugal nos primórdios do séc. XVIII, um período de grande importância histórica para o Brasil. A descoberta de ouro e diamantes no interior do País, mais especificamente na capitania de Minas Gerais, produzira uma ascensão econômica impetuosa dessa colônia portuguesa. Foram ali fundadas numerosas povoações, alicerces de futuras cidades. Entre elas, destaca-se Vila Rica (atualmente, Ouro Preto), capital da capitania. Era um pólo de atração para uma poderosa onda de arquitetos, construtores civis e mestres de muitos outros ofícios, vindos não somente do litoral brasileiro, como também da longínqua Europa.

Lá, nessa capitania, menos dependente que as outras províncias das autoridades coloniais, nasce uma arte nacional brasileira, fundamentada na tradição da arquitetura e escultura barrocas do Norte de Portugal, mas que adquiriu um caráter autóctone na interpretação de mestres locais.

Na época, trabalha em Minas Gerais Francisco Xavier de Brito, um escultor e decorador famoso, autor das gravuras na Igreja de São Francisco da Penitência, no Rio da Janeiro. Ainda em menino, podia Aleijadinho assistir ao trabalho daquele mestre, que iria exercer grande influência em sua formação como escultor. Já em Vila Rica, De Brito executou as gravuras na capela matriz da Igreja da Nossa Senhora do Pilar, a mesma em que anos atrás o tio de Aleijadinho, Antônio Francisco Pombal, criara um interior considerado, em certo sentido, um marco miliário na história da arquitetura regional.

Fosse como fosse, quem mais influiu na formação de Aleijadinho em sua condição de arquiteto e escultor foi o seu pai, um ex-carpinteiro tornado um dos arquitetos mais renomados da capitania, que recebia encomendas de mosteiros para construção de igrejas, elaborava planos e desenhos e superintendia nas obras.

Porquanto Antônio Francisco Lisboa era filho de uma escrava, a legislação então em vigor também o tinha por escravo. Porém, quando ainda estava em tenra idade, o pai o havia alforriado e foi educando juntamente com os seus filhos legítimos, nele incentivando ativamente as propensões artísticas. Em Vila Rica, Antônio podia ter adquirido os primeiros hábitos de construtor no levantamento da Igreja da Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, cuja construção iniciada ainda antes do seu nascimento prosseguiria até meados do séc. XVIII. (Dentro de mais de cinco décadas, o próprio Aleijadinho nela seria sepultado.) Nos anos 40, Manuel Francisco Lisboa dirige as obras de várias repartições públicas. Em 1745-1757, termina o prédio da Prefeitura Municipal e em 1741 assina contrato para construção do Palácio de Governadores, em Vila Rica.

Em vida do pai, o filho sempre seguiu os seus passos; primeiro, como aprendiz; depois, como o primeiro ajudante. Agora, determinar a cota-parte de Aleijadinho em determinadas obras daquela época é praticamente impossível, pois seu nome passa a constar de documentos oficiais só pela morte do pai, ou seja, a partir de 1767. A Igreja da Nossa Senhora do Carmo foi a última criação de Manuel Francisco Lisboa e a última obra de Aleijadinho como ajudante-de-obras. Agora, ele inicia uma carreira de artista autônomo. Tudo indica que já então era Aleijadinho um mestre feito, pois logo procede à construção da Igreja de São Francisco, em Vila Rica, que entraria na história da Arquitetura como uma produção original da escola brasileira da época colonial.

Em vista disso, não se foge ao problema da periodização da obra de Aleijadinho. Até agora, não se registra uma única tentativa mais ou menos séria de traçar as etapas de sua carreira artística. Alguns autores dividem sua obra em dois períodos: antes e durante a doença. Sem dúvida que o mal influiu em Aleijadinho, mas esse goticismo (ou melhor, traços góticos com uma emotividade e expressividade acentuadas)  que certos pesquisadores descobrem nas obras estatutárias de Aleijadinho 3, considerando ser este um efeito da tragédia psicológica, revela-se em suas obras estatutárias de Vila Rica ainda antes da moléstia.

Outros autores, como, por exemplo, Freudenfeld, aplicam o princípio geográfico, dividindo a trajetória artística de Aleijadinho em função de época de sua criação em várias cidades da capitania. Todavia, esse critério também parece improcedente. Como Aleijadinho fosse um dos arquitetos e escultores mais notáveis da capitania, orientava o trabalho de uma quantidade de mestres de vários ofícios. Ele pessoalmente apenas superintende nas obras mais importantes. É porque pode chefiar os trabalhos de construção realizados simultaneamente em várias cidades da região. Em 1771-1783, sua ação centrou-se em Sabará, onde executou uma série de obras arquitetônicas e estatutárias sob encomenda da irmandade local dos Franciscanos. Ao mesmo tempo, o mestre trabalha em São João d’el Rei, a levantar algumas construções complicadas (1774). Simultaneamente, Aleijadinho dirige as obras da Igreja de São Francisco de Assis, em Vila Rica, e participa, possivelmente na mesma época, na construção da Igreja da Nossa Senhora do Carmo, projetada pelo seu pai.

Para resolver o problema, um caminho melhor seria analisar diretamente a própria obra de Aleijadinho. A exemplo das suas obras básicas, poder-se-ia acompanhar a evolução progressiva de determinados princípios artísticos, os quais refletem as propriedades da evolução da vida social e cultural da capitania. Quem analisar as datas das suas obras mais importantes, concluirá que nos anos 60 a 80 do séc. XVIII Aleijadinho trabalhou como arquiteto por excelência. Já no período posterior, dá prioridade à escultura.

Porém, não se pensará que em cada um dos períodos acima o mestre se dedicasse exclusivamente ou a uma, ou à outra arte. Os dois gêneros nele se entrelaçam constantemente, mas se no primeiro período Aleijadinho atinge o ápice de sua mestria na arquitetura com a criação da Igreja de São Francisco, em Vila Rica, um monumento inimitável; depois, em 1790-1800, ele produz suas melhores obras na área da escultura, com várias composições complexas em Congonhas do Campo. Um marco lógico a separar os dois períodos são os anos 80, época assinalada pela ascensão do movimento nacional-libertador e pela atividade da famosa Inconfidência Mineira, sociedade clandestina apostada em derrubar o poder colonial português.

Nesse período, Aleijadinho ocupa-se principalmente do gênero decorativo, criando admiráveis fachadas lavradas e interiores de igrejas. Inspirado no ideário libertador, faz seu famoso ciclo em Congonhas do Campo, o qual se nos afigura como um monumento «sui generis» aos heróis da Inconfidência.

Vamos analisar as obras principais de Aleijadinho. A sua criação arquitetônica mais portentosa é a Igreja de São Francisco de Assis, em Vila Rica. Porque exatamente a partir dela se inicia uma etapa nova de desenvolvimento da arquitetura, adquirindo ela algumas feições caraterísticas que legitimam classificá-la como um estilo especial: a «arquitetura interiorana», diferentemente da «arquitetura do litoral», com predomínio do tradicional tipo jesuíta de igreja.

É hábito pensar que aquela Igreja foi construída inteiramente por Aleijadinho; porém, não existe uma maneira de apurar se essa tese é verdadeira 4. Dizem os livros contábeis da irmandade eclesiástica dos Franciscanos, que encomendara a construção, que Aleijadinho foi pago somente pelas cátedras. Contudo, sabe-se de ciência certa que, além delas, o mestre executou o portal, um sem-fim de detalhes dentro da Igreja, a pia para ablução das mãos e lavores na capela principal. Alguns pesquisadores supõem que os desenhos da planta-base da Igreja tenham sido da autoria do pai de Aleijadinho e que, ajudado pelo filho, tenha sido exatamente quem criou a planta da Igreja nos derradeiros anos de sua vida. Em todo caso, melhor seria pensar que Antônio Francisco Lisboa trabalhasse na execução dos desenhos da Igreja de São Francisco de Assis sob orientação do seu pai: de tão profundas que são as diferenças entre o caráter dessa Igreja e as construções levantadas por Manuel Francisco Lisboa, as quais deixam a impressão de bastante austeras e de proporções um tanto pesadas.

A seguir a Antônio Francisco Pombal, é na Igreja de São Francisco de Assis que Aleijadinho continua desenvolvendo certos princípios compositivos e estilísticos do barroco europeu, porém mantendo a tradicional estrutura tripartida do edifício, como era costume em Portugal.

Igreja de São Francisco de AssisNa composição dos elementos arquitetônicos e na distribuição dos detalhes decorativos da principal fachada oeste, Aleijadinho também continua fiel à tradição barroca. As janelas, as pilastras, as semicolunas acentuam a projeção da fachada inteira para o alto, com a altura predominando sobre a largura. Por fora, é uma igreja simples, despretenciosa, com paredes laterais lisas, quase sem soluções de continuidade, de uma caixa retangular constituindo o corpo do edifício, um telhado simples de duas águas… Tudo isso, porém, não pode deixar de maravilhar com um jeito construtivo grandioso e arrojado. Aleijadinho percebera e interpretara à sua própria maneira as formas européias de praxe e soubera criar uma obra arquitetônica autóctone original, tendo evitado o provincialismo e o ecletismo.

Umas proporções exatas, uma inteireza quase plástica de todos os elementos arquitetônicos, as linhas suaves, arredondadas das torres, que a par das feições côncavas do vestíbulo como se repetissem o desenho barroco complexo a adornar a fachada, os enfeites e relevos esculturais admiravelmente executados: tudo isso cria uma imagem lúcida e alegre, aberta ao sol brasileiro brilhante e ao ar leve de Minas. Esse «amor à sinuosidade», puramente «instintivo» 5, continua um autêntico traço nacional da arquitetura brasileira não apenas do período colonial, como também do presente. Ao adotar a «plasticidade milagrosa» 6 do barroco, a arquitetura moderna desenvolve sobre essa base novas formas e novas estruturas.

Um passo seguinte no desenvolvimento do credo artístico de Aleijadinho foi a construção da Igreja de São Francisco, em São João d’el Rei. Aí, vale fazer uma ressalva, dizer que ao próprio mestre pertence somente a planta dessa Igreja, enquanto que as obras práticas foram orientadas por outros arquitetos. Mas já a planta, só por si, dá para formas uma idéia sobre os desígnios artísticos do seu autor. Ele prioriza a organização do espaço interno, o qual adquire, nessa Igreja, certos traços absolutamente novos, chegando a ser ainda mais inteiriço, mais monolítico e mais dinâmico.

Quem analisar a trajetória da evolução de Aleijadinho arquiteto, observará que no desenvolvimento do espaço interno da Igreja e do seu invólucro arquitetônico ele como que parta de uma concepção estatutária das formas, o que comunica ao espaço e aos volumes arquitetônicos uma plasticidade muito especial, quase palpável.

Na escultura, Aleijadinho não era tão conseqüente e tão inteiro como na arquitetura. Isso por várias razões. O Brasil colonial não possuía uma tradição evoluída de escultura monumental, porquanto a própria metrópole tampouco a possuía. As numerosas estátuas de santos, em madeira ou pedra, douradas e pintadas «como vivas», ou eram simples elementos decorativos para adornar o interior, ou tinham um caráter puramente ritual. Na ausência de predecessores de quem tivesse podido imitar os princípios artísticos e técnicas essenciais, como acontecia, por exemplo, na arquitetura, Aleijadinho percorre um caminho complicado, indo das primeiras estátuas de Sabará, bastante primitivas, prosseguindo com os relevos de São Francisco, de uma mestria e delicadeza espantosas na técnica de modelar, e culminando com as obras, genuinamente monumentais, em Congonhas do Campo.

O caminho artístico autônomo de Aleijadinho escultor se inicia em Sabará, onde se conservam várias das primeiras estátuas de autoria insuspeita do mestre: uma imagem de São João de Cruz e relevos da cátedra inspirados em cenas das Sagradas Escrituras.

Os relevos da Igreja de São Francisco de Assis, em Vila Rica, aparecem como um passo assinalável para a frente na evolução da mestria de Aleijadinho escultor. Ele foi obrigado a cumprir a vida toda encomendas recebidas de mosteiros para decorar fachadas e interiores de igrejas, altares, capelas etc. Tanto mais surpreendentes são os sucessos alcançados pelo mestre em suas produções estatutárias, bem mais raras em comparação com as obras decorativas. Nesse sentido, a Igreja de São Francisco de Assis teve obviamente sorte, pois o artista para ela executou vários relevos e até um grupo estatutário. Dos três lados de cada cátedra se situam relevos com cenas inspirados em assuntos bíblicos. Dos lados laterais estão figurados os apóstolos. Chamam uma atenção especial os relevos ocupando a parte central de uma e da outra cátedra. No centro da cátedra esquerda aparece Cristo pregando um sermão. A cátedra direita apresenta a cena «Jonas e a baleia».

Muitos críticos estrangeiros classificam esses relevos de «góticos». É principalmente deles que dimana a versão sobre o goticismo de toda a arte de Aleijadinho. Supõe-se que esse «goticismo» tenha sido originado pelo pessimismo e propensão para misticismo, os quais teriam se desenvolvido no mestre por causa da doença. Haja vista, porém, que na época de criação dos relevos Aleijadinho ainda não estava doente, ou melhor, ainda não sabia disso; portanto, nada motiva a tese acerca da «alma sofredora» de Aleijadinho, especialmente porque Bretas 7, seu primeiro biógrafo, descreve o mestre como um homem sobremaneira vivaz e comunicativo. À luz dos argumentos acima, melhor seria ir buscar as origens dos traços góticos em outra direção. Impossibilitado de conhecer pessoalmente a obra dos melhores mestres das artes européias, Aleijadinho procurava achar seu próprio estilo. Em primeiro lugar, podia ter sido influenciado por gravuras de conteúdo religioso trazidos de Portugal e paramentos de igreja com imagens de cenas bíblicas neles martelados. Vale lembrar no caso João Batista Gomes 8, um dos seus mestres, que vivera muitos anos na França. Podia ter familiarizado seu discípulo com a tradição gótica francesa. O Brasil do séc. XVIII ainda vivia como que na Idade Média. Como na Europa medieval, lá eram centros da vida cultural principalmente mosteiros; daí, pelo visto, que os artistas brasileiros adotavam tão de bom grado certos traços do estilo gótico europeu.

A Providência parecia favorecer Antônio. Ele alcançou tudo quanto uma pessoa de sua condição podia ter imaginado nos sonhos mais ousados: nascido escravo, ganhou a liberdade; um homem de cor, ele era respeitado por gente de nobre linhagem. Tanto mais contundente foi o golpe que o destino lhe armou. A lepra começou pelos pés. Pouco depois, Antônio só podia locomover-se sobre os joelhos, pois os dedos dos pés lhe haviam caído. Os três escravos fiéis: Maurício, Januário e Agostinho, acompanhavam-no por toda a parte, transportando-o em maca especial de um lugar a outro, e nas longas viagens pela capitania o ajudavam a montar o cavalo. Tendo aprendido as técnicas de construção e escultura, auxiliavam o dono no seu ofício. Aqueles homens não eram meros escravos, eram, em primeiro lugar, seus amigos devotos. A doença não destruiu o espírito de Antônio. Uma força de vontade enorme ajudou-o a encaminhar o seu temperamento robusto e uma força vital inextirpável para a criação artística. Doravante, a obra artística seria o escopo único de toda sua vida.

O escultor afasta-se do convívio humano, se condena voluntariamente à solidão, entra na Irmandade de São José, a qual o elege juiz em 1787. Vive retraidamente, trabalha de manhã cedo até alta noite, e só Maurício, Januário e Agostinho, seus amigos fiéis, compõem sua roda social.

Desde então, a biografia de Antônio, já pobre em peripécias, está plenamente vinculada só aos lugares em que recebia e executava encomendas. Ainda em vida do mestre, em torno do seu nome vão nascendo lendas em que fatos reais se misturam com fantasia. Esse deficiente físico possesso de gênio criativo torna-se aos olhos do povo um ídolo, um herói, um orgulho nacional, essa última circunstância que se reveste de um significado especial num clima marcado pela ascenção do espírito de auto-identidade nacional e avolumamento da luta libertadora, no qual criava suas obras.

Aleijadinho viveu e produziu no período inicial da luta pela independência, a qual se centra na capitania de Minas Gerais. Tudo isso não podia deixar de se refletir na formação de Aleijadinho como ser humano e como artista. Por força do seu ofício, ele viaja muito pelas cidades da região a presenciar toda a miséria em que viviam os seus irmãos em sangue, sobre os quais imperava uma lei de ferro: «o ventre da escrava gera escravo».

Apesar de que em virtude de sua doença o próprio Aleijadinho não podia, claro está, participar diretamente da luta libertadora, seu nome aparece relacionado por uma lógica natural e absoluta com as idéias avançadas da época, das quais ele não podia permanecer à margem, pese embora sua tragédia pessoal: com a Inconfidência Mineira.

A idéia de uma conjuração nasceu num círculo de literatos eminentes de Minas Gerais. Era integrado por Tomas Antônio Gonzaga, um poeta ilustre, Cláudio Manuel da Costa, também poeta, além de vários outros. A alma desse movimento e seu autêntico guia era Joaquim José da Silva Xavier, cognominado Tiradentes 9. A pouco e pouco, mais e mais brasileiros aderem ao grupo. E só uma traição direta, cometida numa etapa em que o pronunciamento ainda não havia sido suficientemente preparado, e a indecisão dos líderes da conspiração após a captura de Tiradentes foi o que predeterminou o seu malogro. A Inconfidência Mineira foi esmagada, sendo Tiradentes supliciado em público e os demais dirigentes lançados na cadeia, da qual seriam depois desterrados para colônias africanas remotas. Também Cláudio Manuel da Costa morre de uma forma trágica. Preso juntamente com os outros, foi sujeito a uma «questão», um interrogatório cruel, com torturas, as quais não agüentou. Segundo a versão oficial divulgada pelo visconde de Barbacena, Governador de Minas Gerais, e seus agentes, Cláudio se suicidou.

A figura de Cláudio Manuel da Costa, a quem Aleijadinho estava ligado por muitos anos de amizade, desperta um interesse especial. Porque através desse seu amigo podia Aleijadinho ter conhecido a elite intelectual da capitania, formada em Minas Gerais na segunda metade do séc. XVIII. Também não há dúvida de que por intermédio de Cláudio Manuel podia Aleijadinho ter acesso às bibliotecas clandestinas que seriam mais tarde apreendidas aos Inconfidentes.

A amizade com Da Costa indica um relacionamento direto de Aleijadinho com os Inconfidentes. É um vínculo que vale sublinhar, visto que ate ultimamente não tem merecido a devida atenção, embora, quem sabe, possivelmente aí esteja a chave para o enigma da obra do escultor, sobretudo no último período, marcado pelo final heróico do guia do movimento e o martírio do seu amigo. Em Congonhas do Campo, ele criou uma espécie de monumento aos heróis da Inconfidência: o ciclo estatutário «Paixões de Cristo», situado no jardim do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos.

Educado na tradição da arte religiosa, Aleijadinho podia levantar um monumento aos desaparecidos só recorrendo a métodos figurativos indiretos. A explicação está não apenas no medo perante as autoridades religiosas e oficiais. Não se esquecerá que no Brasil de então as artes mundanas se achavam sub-desenvolvidas. Estava Aleijadinho habituado a raciocinar nos moldes da História Sagrada, para já não dizer que as palavras derradeiras de Tiradentes: «Cristo também morreu por justa causa» 10 podiam ter imbuído o escultor da idéia de encarnar em imagens das Sagradas Escrituras os traços heróicos de contemporâneos seus. Ao que nos consta, na imagem de Cristo ele figurou Tiradentes. Seu destino se assemelha em grande parte ao de Aleijadinho. Ambos saíram das camadas populares mais baixas, ambos suportaram com o povo simples todas as injustiças e calamidades, ambos compreendiam as esperanças e as aspirações populares. Um ofereceu a vida pelo povo, enquanto que o outro eternizou aquela façanha por meios artísticos. Ambos chegaram a ser figuras simbólicas da Nação brasileira.

Em 1789, já gravemente doente, recebe Aleijadinho a encomenda para criar a composição estatuária «Paixões de Cristo».

O ciclo compõe-se de seis «passos»: «A Última Ceia», «Passo do Horto», «Prisão de Cristo», «Flagelação de Cristo», «Coroação de Espinhos», «Subida ao Calvário e Crucificação». Para essa composição, Aleijadinho cortou de cedro 66 figuras. Com ele trabalharam numerosos ajudantes, entre os quais os seus escravos fiéis. As esculturas foram pintadas pelos então famosos mestres Manuel da Costa Ataide e Francisco Xavier Carneiro.

No ciclo «Paixões de Cristo», Aleijadinho vale-se da tradição da escultura popular, imprimindo, porém, um conteúdo novo às habituais imagens das Sagradas Escrituras. Baseando-se no parentesco aparente entre a história da Inconfidência e a história de Cristo, ele como que trace um paralelo histórico entre ambas. Como já se disse, os Inconfidentes discutiam seus problemas em reuniões secretas; daí, a analogia com «A Ceia». Também no meio dos Inconfidentes não faltou um Judas, que traiu a organização. Tanto no primeiro como no segundo caso, no centro aparece um herói a enfrentar de caso pensado os tormentos por uma justa causa. Lá, os inimigos do povo, os invasores são os romanos; aqui, são os portugueses que executam em público os líderes para amedrontar o povo.

A estrutura orgânica das «Paixões de Cristo» permite sua divisão em três grupos, reunindo o primeiro as imagens de Cristo e dos apóstolos. Sabe-se quase decerto que pertencem ao cinzel do próprio Aleijadinho. Um traço marcante do grupo é uma relativa idealização dos personagens, mormente de Cristo. O escultor figura não um homem concreto e sim uma imagem sintética de filósofo mártir que chama a si sofrimentos em prol das suas idéias. Ao mesmo tempo, a imagem de Cristo deixa entrever um parentesco com a figura de Tiradentes.

As pessoas simples: os acompanhantes de Cristo e testemunhas de sua morte, estão figuradas de uma maneira diferente. Seus rostos são mais realistas e concretos. E, por último, os inimigos: os legionários romanos e os carrascos. Para os estudiosos, essas figuras foram inteiramente executadas por alunos e ajudantes do escultor, de tão pronunciadas que são as diferenças entre o modo de sua realização e as habituais técnicas de Aleijadinho. Os corpos dos soldados e seus rostos estão gravados muito toscamente, de feições exageradas. São quase máscaras, talvez, parecidas às que se põem no Carnaval. Apesar de um estilo grosseiro, são muito expressivos e plenos de movimento. Consta que, mesmo se Aleijadinho não tivesse participado diretamente na criação dessas figuras, foram feitas pelos ajudantes sob uma observância imediata dele. Já a concepção original pertence, sem dúvida ao próprio escultor. Nesses estátuas, ele expressou sua posição não só em relação aos carrascos de Cristo, como também aos portugueses, inimigos da sua Pátria.

O ponto culminante do mestre é a composição «Os Doze Profetas», instalada na balaustrada da escadaria do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos 11. Todas as esculturas estão executadas em pedra-de-sabão azulácea, a preferida de Aleijadinho.

As formas complexas da escadaria predeterminaram em grande parte as propriedades da organização rítmica de toda a composição, plena de um heroísmo patético e elevado civismo.

As esculturas não estão interligadas por uma ação concreta. Cada profeta está mergulhado em suas reflexões. Porém, a distribuição das figuras entre si faz com que todas juntas componham um grupo animado por um movimento comum, o qual deixa a impressão de uma dança complexa de um balê fantástico, cujos elementos giram, se voltam, avançam a recuam diante das rajadas do vento 12. Assim, toda a composição assenta num contraste entre a estaticidade de cada peça e a mobilidade do grupo em seu todo. Porém, o escultor complica ainda mais o conjunto, colocando as figuras centrais abaixo do nível médio, como numa imitação de duas ondas irradiando de um centro para os lados opostos. Cria-se assim a impressão de um remoinho.

A escadaria apresenta dois lanços principais, os quais, por sua vez, dividem o grupo em duas partes iguais. As estátuas dos profetas aparecem distribuídas em uma ordem rítmica dos dois lados de cada lanço. À medida que vão se elevando, determinadas figuras vão se reunindo em conjuntos pitorescos de uma estrutura equilibrada, nos quais a quantidade de figuras vai variando constantemente, o que dá a impressão de uma dinâmica complexa. Com uma organização precisa, quase geométrica, do grupo, com o saber enquadrar acertadamente as figuras na difícil fôrma da elipse e fazê-las movimentarem-se num ritmo comum alcança Aleijadinho uma expressividade invulgarmente pitoresca dessa série estatutária e uma rara eloqüência emocional.

As caraterísticas de cada profeta são extremamente individuais, mas, ao mesmo tempo, toda a composição está assinalada por uma unidade estilística completa.

A pedra usada para as estátuas possui uma estrutura bastante mole e esponjosa. Aleijadinho aproveita as propriedades do material para criar umas figuras plásticas, como que modelando-as em massas volumosas, de um contorno quase contínuo , de modo que, vistas de longe, deixam a impressão de monólitos. E, não obstante, o escultor trabalha minuciosamente cada detalhe da roupa, da ornamentação, insere uma variedade de elementos decorativos, como barbas se agitando, capas pitorescamente pregadas e certas vestes fantásticas. De quebra, distribui as pregas de forma a acentuarem o movimento circular de cada figura, guiando a vista para contemplá-las de todos os lados.

Para formar um conceito acerca do conteúdo filosófico desta composição, convém encará-la com os olhos de um contemporâneo de Aleijadinho. E compreender, acima de tudo, quem eram os profetas, qual a mensagem que traziam para os homens e qual o significado que teriam tido para a gente da época. Deixando de lado o quanto de lendário e fantástico atribui a Bíblia a essas personalidades, poderíamos dizer: eram sábios, preceptores do povo, figuras sociais e políticas, expoentes de uma concepção religiosa fundamentada no princípio de responsabilidade moral coletiva do homem perante Deus. Sim, sábios e preceptores do povo, figuras sociais e políticas… Será por isso mesmo que para esse seu conjunto escolhe Aleijadinho precisamente os profetas, e não santos quaisquer. Pelo visto, era um aspecto importante para ele, pois só assim é que o artista podia falar com o seu contemporâneo.

Toda a composição é reunida por um sentido filosófico único. Nos anos de conspirações e insurreições contra o colonialismo, selvaticamente esmagadas pelas autoridades, naqueles anos de terror ressoou a voz de Aleijadinho de uma forma clara, inequívoca. «Eu choro o desastre de Judá e a ruína de Jerusalem» 13 – diz pela boca do profeta Jeremias. «Depois que os Serafins celebraram o Senhor, um deles trouxe aos meus labios uma brasa com uma tenaz» – responde-lhe Isaias. « Ó Babilonia, Babilonia, eu te arguo, eu te arguo ó tirano da Caldeia!» exclama iradamente Habacuc. Não há dúvidas de que essa «conversa» imaginária de profetas assenta num alicerce histórico bem concreto: a luta nacional-libertadora do povo brasileiro contra o jugo português. Pela boca do profeta Naum: «Declaro que a Assíria será completamente destruida», Aleijadinho parece prenunciar o desfecho dessa luta. Com efeito, em 1807, Lisboa é, a seguir a Madri, tomada pelas tropas de Napoleão, circunstância essa que contribuiu objetivamente para a libertação do Brasil.

Impõe-se, pois, a conclusão de que, diferentemente das «Paixões de Cristo», um monumento aos heróis da Inconfidência, na qual o escultor evoca um passado, neste caso, ele fala diretamente `a época presente, levando para as pessoas a fé no triunfo da justa causa, como numa repetição das palavras do profeta Daniel: «Encerrado por ordem do rei na cova dos leões, sou libertado, incólume, com o auxílio de Deus.»

O elevado conteúdo filosófico prende com uma forma artística original. A individualidade artística do mestre manifesta-se com tamanha força que o decorativismo fica reduzido à condição de elemento secundário. São obras verdadeiramente monumentais. O convencionalismo cede perante o patetismo deveras cívico do grupo estatutário.

O ciclo de Congonhas do Campo é a última criação grande de Aleijadinho. Depois, ele já não participa diretamente de quaisquer trabalhos, se bem que ainda faça esboços, desenhos para o altar-mor da Igreja do Carmo, em Sabará, e dois altares laterais para a famosa igreja em São João d'el Rei e a Igreja da Nossa Senhora da Piedade, em Vila Rica.

Dos últimos anos de sua vida quase não se guardam notícias. De todos esquecido, cego e paralisado, o escultor falece em 18 de novembro de 1814.

Só se pode compreender e avaliar o significado de Antônio Francisco Lisboa se sua obra for considerada no contexto das particularidades do desenvolvimento histórico do Brasil no séc. XVIII. Pertence inteiramente à época que marcou a fase inicial de formação da Nação brasileira e da sua cultura. Importa sublinhá-lo uma vez mais, posto que a produção de Aleijadinho (como também, aliás, de qualquer outro mestre grande da América Latina) não pode ser «medida» com padrões europeus, sem levar em conta as específicas vias de formação da cultura nacional. A individualidade artística de Aleijadinho não tem paralelo, porque ele vê os princípios e as formas da arte européia através de uma ótica nova: uma vez assimiladas as técnicas estilísticas do estilo barroco, ele as utiliza não para fins decorativos e sim para fazer valer o ideário humanista do seu tempo.

A obra de Antônio Francisco Lisboa tem um significado enorme para o Brasil. Porque sua figura se situa nas origens da cultura nacional, porque ele é um dos seus criadores.

    N O T A S:
  1. As datas variam quase 10 anos: de 1730 a 1740.
  2. A. Freudenfeld. «O Aleijadinho, Mestre Antônio Francisco Lisboa». São Paulo, 1954, pág. 10.
  3. Guido  Angel.  «Supremacia  del  Espíritu  en  el  Arte». Santa Fé, 1949, pág. 19; R. A. Freudenfeld. Op. cit., pág. 16.
  4. R. A. Freudenfeld. Op. cit., pág. 15.
  5. S. Papadaki. «The Work of Oscar Niemeyer». Nova Iorque, 1950, pág. 51.
  6. Ibidem.
  7. R. A. Freudenfeld. Op. cit., pág. 12.
  8. O nome desse pintor é indissociável da criação de uma escola local de gravadores. Dessa escola saíram Joaquim Carneiro da Silva e Antônio Fernandes Rodrigues, mestres famosos glorificados não somente nas terras pátrias, como também na Itália, para a qual se mudariam. Lá, esses pintores eram tidos entre os melhores mestres da época. Quando João Batista Gomes veio para Vila Rica, Antônio Francisco teria 12 ou 13 anos. É possível que precisamente em sua oficina tenha Aleijadinho recebido as primeiras noções acerca do Desenho, Anatomia, Perspectiva e Composição.
  9. Роша Помбу. «История Бразилии». (Obs.: tradução da «História do Brasil», de Rocha Pombo, para o russo), Moscou, 1962, pág. 263 e outras.
  10. Tradução inversa do russo.
  11. Alguns investigadores supõem que essa escadaria de formas barrocas complexas que sustenta as esculturas tenha sido criada muito antes das próprias.
  12. George Kubler, Martin Soria. «Art and Architecture in Spain and Portugal and their American Dominions». Baltimore, Maryland, 1959, pág. 195.
  13. As palavras dos profetas aparecem em rolos desdobrados nas suas mãos.
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